O organismo quer prosperar
As cidades impermeáveis como imagem de um mundo deprimido
Já repararam como o mundo vegetal é prolífico?
Uma fruta de jambo dá um caroço que se divide em dois, mas esses não são os dois cotilédonos dele. Se você enfiar o caroço inteiro na terra, verá que podem brotar uns quatro pés de jambo ou mais. A árvore, quando começa a dar frutos, não para. No seu período de mais fertilidade, ela pode te proporcionar inúmeros piqueniques (para desenhar uma estatística mais lúdica). Mas nem todas as frutas saem do galho para as mãos de quem colhe. Muitas caem no chão. Ao cair, elas sequer precisam de terra para germinar, pois grande parte dos frutos, polpudos ou não, já caem do galho com seu próprio substrato. Com um pouco de sorte, o gérmen encontrará depois um espaço propício para prosperar.
O organismo quer prosperar. O organismo quer persistir.
Consiste nesta persistência a alegria dos vegetais de regiões como Minas, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Por onde você passa, avista (ainda hoje) matas exuberantes com vários tons de verde. E desses tons de verde, variações com rajadas amarelas, bolinhas cor de rosa, pétalas multicores e, não raro, caules e folhas polpudas que, por sua vez, garantem novamente substrato provisório para novas e mais novas pulsações de seiva por entre os xilemas das improváveis plantas da Mata Atlântica.
Tudo o que o organismo precisa é de pousar numa superfície favorável.
Tudo isso que descrevo, com mesclas de imagens humanas, minerais, culturais e vegetais, poderia (deveria!) soar óbvio, mas não é. Não é, porque as frases se dirigem aos olhos de um certo animal esquisito, um mamífero tão dócil quanto perigoso que fabricou para si um tipo incomum de habitat, um mundo impermeável no qual todos os outros seres vivos, sejam do mundo vegetal ou do animal, perambulam com dificuldade, como quem desafiasse um inimigo perigoso.
As plantas jogam desesperadamente seus frutos sobre os asfaltos, enquanto desenvolvem raízes para dentro de cubículos de terra nos quais, por não caberem, transbordam em toda parte, quebram a pedra, racham o concreto, despedaçam os canteiros. Os humanos que por ali passam se revoltam: um absurdo a prefeitura não cuidar deste problema. E este é o grande drama dialetal: o conflito entre os espaços impermeáveis e a sua manutenção por parte do poder público. Vez por outra, o problema é resolvido com uma boa serra elétrica.
O humano se habituou a viver mesmo em locais onde a umidade e a vegetação são vistos como verdadeiros inimigos. Vegetais são lindos, no entanto. Bem vindos quando passados pelo crivo do supermercado ou das empreiteiras. Mesmo a terra, sempre tão profusiva em toda parte, no mundo impermeável do primata, é transformada em mercadoria e vendida a bons preços nas lojas. É estranho pensar que seja assim: se o instinto diz que basta cavar para se obter terra, a realidade mostra que o nosso mundo está coberto de cerâmica, de azulejo, de massa corrida, de cimento duro, de piche seco, de tudo, enfim, que torna difícil a passagem dos líquidos para as câmaras do subsolo.
As águas acumuladas são um capítulo à parte. A água cai do céu, molha a terra, se acumula nos lençóis freáticos e destes lençóis formam-se as nascentes. Os "olhos d'água", como são chamados por alguns bípedes, são o início daquilo que depois chamaremos de rio. Os rios podem variar de tamanho e desaguar, por sua vez, em outros cursos d'água maiores, até que alcancem o mar. Tudo isso seria perfeito, não fosse o fato de que a preferência é de que os rios não existam. E, sem saber o que fazer com eles, cobre-se com a substância impermeável mais conveniente. Os cursos continuam, mas longe dos olhos humanos e livres das indesejáveis plantas e organismos que costumam prosperar à beira de todo e qualquer curso d'água, seja córrego, riacho, ribeirão ou rio.
Os rios, quando são muito grandes, são difíceis de domar. E essa é mesmo a palavra que melhor descreve o esforço humano para controlar suas volúpias: domar. O rio é um animal descontrolado que escapa à compreensão deste animal que se acostumou a destruir tudo aquilo que não compreende. Havia um comercial da prefeitura de Belo Horizonte, que circulava nos anos 1970, onde se ouvia o locutor dizer:
"Era uma vez um leitão que parecia manso, mas era era bravo e sujo, muito sujo. Quando enchia, entrava até na casa dos outros. Às vezes enfurecia. Aí então não respeitava nem os outros animais. O córrego do leitão não respeitava nada, ninguém."
O curso d'água é comparado ao filhote do porco (um presente retórico dado pelo nome do córrego) e este, por conseguinte, tomado pelo estereótipo anti-alimentar de que os porcos são sujos. Mas este não é só sujo, é bravo e não respeita ninguém. Sempre as imagens do homem diante da selvageria descontrolada da natureza.
Esse comercial se intercalava a um outro da mesma época, que começava com a seguinte frase:
"Hoje o Leitão está por baixo desta nova e ampla avenida, uma verdadeira passarela negra que vai ajudar a resolver os nossos problemas de trânsito". Sim, com a reforma que cobriu o córrego e desfez o belo bulevar que ali estava antes, o leitão foi à lona, foi subjugado, está por baixo. Porque os verdadeiros problemas enfrentados por esse mamífero, o humano, são os do trânsito. Nada mais importa. Sequer a vida de outros humanos parece ter mais importância. Que dirá a de um leitão sujo e bravo. Fulano foi atropelado? Agilize o atendimento para que o trânsito volte ao normal. Caiu do andaime? Morreu na contramão atrapalhando o tráfego? Manda recolher logo para as coisas voltarem para o curso civilizatório.
Porém o curso civilizatório não corresponde ao curso de nenhum rio. O bípede se esquece de considerar que o rio sujo, quem sujou foi ele mesmo. Sim, porque essa extraordinária espécie faz o que nenhum outro animal faz ou fez: esse animal caga na água que ele mesmo beberá depois. E caga mesmo, não num sentido metafórico, que também se aplica. Mas no sentido mais direto mesmo, fazendo com que seja impossível contemplar as águas de qualquer água que escorra dentro de uma cidade como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Vitória ou São Paulo.
Os rios, no entanto, são como as plantas: querem prosperar. E prosperam toda vez que as chuvas caem copiosas sobre lugares onde o rio foi suprimido mas o relevo continua. Suas águas então, não cabendo mais dentro das galerias, alagam os espaços impermeáveis, arrastam os carros, impedem o percurso, enfim: atrapalham o tráfego.
Adeptos de paradoxos, os habitantes das terras impermeáveis não deixam, no entanto, de sonhar com tudo aquilo que é selvagem, tudo aquilo que é "aos olhos humanos" bonito: flores, rios caudalosos, leitos monumentais, animais de belo porte e as sementes. As sementes que pulsam por toda parte, que brotam onde quer que caiam, que só precisam que o acaso as tenha jogado no leito de algum rio, ou em qualquer montinho de terra, de areia ou de qualquer coisa orgânica que lhes sirva de substrato. Mas os substratos não estão disponíveis. Os rios cobertos e desviados, drenando para fora do alcance de qualquer vegetal, entre pedra e pedra, pedra impermeável.
O curso civilizatório provavelmente era isso: um esforço do primata bípede humano para freiar a grande prosperidade dos organismos.
E assim estamos. Sujos, bravos, inférteis, impermeáveis e por baixo.